POLITICAVOZ: Todos estavam tão cansados
A Cidade Maravilhosa está em guerra. Mas não é uma guerra civil como andam propagando. É uma guerra contra uma estrutura, um modelo. Uma batalha contra o que todos resolveram aceitar como Rio de Janeiro: Vá dizer para ela que o Rio de Janeiro todo é uma favela. Essa música do grupo carioca O Rappa reflete o pensamento comum, o aceitável; aquilo que parecia fazer parte da cidade. Convivo com favela é possível, pois o Rio de Janeiro inteiro é uma favela. Então a guerra não é entre pessoas, de bem e do mal: é contra a história.
Parecia simples achar que a cidade estivesse sitiada há tanto tempo: o convívio com traficantes passou a ser tão normal como viver com o padeiro, farmacêutico e policial. O traficante, no habitat forçado do Rio, parecia mais um sujeito que fazia parte não alienada da sociedade: traficantes ditavam regras sobre violência, sobre a possibilidade de realização de jogos Olímpicos, a Copa do Mundo; ditavam regras onde e quando construir um hospital ou asfaltar uma rua. Em alguns momentos, todos acreditavam que traficantes eram mais do que bandidos, mas parceiros do Estado em sua incompetência de gerenciar o público.
A fórmula mágica não existe: nem para quem vê de longe a situação; como para quem vive nos confins da favela. Enfim, o Rio inteiro é uma favela: em sua precariedade de moradia, infra-estrutura de alguns lugares; como a incapacidade de ser livre em outros. Todos sofriam com a pobreza da favela, mesmo não vivendo nela. E isso ficou pior com os atos agressivos, visuais; perceptíveis e sensíveis. Aceitamos que roubem nossos carros, destruam lares, invadam casas e tomem nossas propriedades: tudo isso já fazia parte da sociedade, como alguma coisa normal como uma doença, como morrer numa fila de hospital.
A chaga aberta passou a incomodar quando o tráfico resolveu invadir o tráfego. Tudo passou a ser uma coisa indecente, imoral e evasiva: ninguém sabia o real motivo dos atos de terror; mas passaram a ser situações tão diferentes da então habitual violência vivida por tantos anos; que alguma coisa precisava ser feita. Perceberam então que alguma coisa estava errada, e pior do que isso; não era ficção de grande público dos cinemas: a dor e a perda estavam ali, na pele; queimando. E todos nos, que vivíamos como marido traído, que passamos a ser os últimos a saber, tivemos que tomar atitude.
Atitude não apenas da polícia, tão visada por todos como parte da bandidagem; os políticos, que de um tempo para cá passaram a ser visto como parte da quadrilha; a população, de quem se pensava ser convenientes, quando na verdade eram reféns; da mídia dos direitos humanos, que decidiram intervir para o bem maior do direito do humano. Enfim, todos os membros de uma sociedade, decidiram escolher o caminho para liberdade; decidiram quais os ganhos eles queriam: romperam com um padrão que tinha forma, mas não tinha jeito de trazer benefício algum para a população.
Vá dizer para ela, que o Rio é uma favela de Noel e Cartola. Favela do conceito novo, da democracia. O diferente. O junto misturado. Vá dizer, agora; que o som da favela vai continuar discutindo a situação social da precariedade; vai reivindicar a vida. Que continuará fazendo samba; que desfilará alegorias. No batuque da mão, a palma sem tiro. Que o pipa sobe, da única brincadeira fácil e barata. Que fogos do final de ano irão comemorar a liberdade que todos pensavam ter, mas que só agora sabem o sabor.
Então corra e diga a ela: Portela, Mangueira e Jamelão da música. Que a molecada agora pensa na escola que não têm. E que acredita que um dia vai surgir; tão nova ali naquele lugar onde nunca se fez nada. Essas serão reivindicações de todos os dias, das leituras do jornal. Cobrarem as responsabilidades do Estado em educação, moradia e saúde; assim como assumiram parceria por causa da segurança. A favela começa a perceber para onde tem que correr quando a situação aperta. E não adianta pensar que ninguém faz nada, quando a questão da ordem está na forma de pedir.
A população pediu segurança, pois “o paradigma” estava cansado de tanta violência.